A astronomia e as
navegações
( Parte I )
Rodolpho
Caniato
Por razões óbvias, grande parte da
humanidade sempre se acumulou próximo de rios, de lagos ou do mar. Mesmo o
homem mais primitivo teve que, em algum momento, perseguir ou fugir através da água, levando
suas coisas e sua gente. Não bastava saber nadar. Era preciso saber levar suas
coisas ou pessoas através da água. As
necessidades da sobrevivência e a curiosidade de conhecer o que há para além
daquilo que podia ver, sempre desafiaram a inteligência humana. Construir
embarcações e utilizá-las é certamente uma das mais remotas atividades do homo sapiens a exigir dele conhecimentos técnicos e a impor desafios sempre maiores. Durante milênios
essas habilidades e conhecimentos foram utilizados em pequenas travessias ou em
deslocamentos próximos à costa. Quando
olhamos para um mapa atual do globo terrestre, podemos nos dar conta de como
quase toda a Terra foi povoada. Mesmo em
ilhas longínquas, alguém, navegando,
“chegou lá”.
Enquanto as navegações foram feitas nas
proximidades das margens, a orientação foi feita com as referências próximas e
visíveis. O desafio da orientação se complica quando já não vemos as
referências de terra firme a que estamos habituados no cenário de nosso
dia-a-dia. E’ nesse ponto que começa a entrar a Astronomia.
Embora a Astronomia utilizando medidas
para navegação só comece, ao que sabemos hoje, próximo aos tempos do
renascimento, a orientação já era
conhecida e utilizada por povos da antiguidade. Já ao tempo das grandes pirâmides do Egito, muitos séculos antes da era cristã, seus construtores já conheciam e usavam a orientação pelo uso dos pontos
Cardeais. Orientação era a determinação
da direção em que
está o nascimento do Sol, o
Oriente. Muito provavelmente o termo orientação, busca do Oriente,
se tornou de grande uso, primeiro para as
tropas do Império Romano que se deslocavam de Roma na direção do Oriente para
as grandes conquistas. O transporte do
Egito para Roma do grande obelisco (centenas de toneladas,hoje no centro da
praça São Pedro, Vaticano) feito por ordem de Calígula, nos primeiros anos do
sec.I dá uma ideia da importância da navegação romana no Mediterrâneo. Mais
tarde, os grandes deslocamentos das Cruzadas (1096-1296), saindo da Europa
também buscavam a Terra Santa no Oriente. Durante a idade média o grande trafego marítimo saia
de Genova e Veneza na direção do levante para o transporte e
comércio das especiarias do Oriente.
Todos os grandes deslocamentos, em
terra ou no mar, desde a antiguidade, foram orientados pelos pontos
cardeais ou pela Estrela
Polar. Não é por acaso que o cristianismo começa com uma história de
reis (magos) que vieram de “longe”, guiados por uma estrela: a Estrela Polar (Polaris). A crença popular tomou isso como sendo uma estrela pousada
sobre o presépio. [x1] Na
realidade a Estrela Polar sempre fora conhecida, desde muito antes do início de
nossa era, como a única estrela imóvel do céu e, por isso, adequada e fácil de
caracterizar uma direção constante, o Norte e, a partir dessa, as demais direções
cardeais.
Em todos os povos que cultivaram e
criaram calendários, tanto no hemisfério Norte quanto no Sul, os diferentes
pontos em que o sol nasce, nas diferentes épocas do ano, serviram a uma dupla
finalidade. Tanto serviam para a orientação como para marcar as diferentes
estações e dias do ano (a maioria de nossas escolas continua a “ensinar” que “o
ponto em que nasce o sol é o ponto Leste, uma evidente inconsistência.). Só
existem dois dias do ano em que o sol nasce exatamente no ponto Leste e se põe
no Ponto Oeste. São os dois dias de equinócio:
o de outono e o de primavera. Para nós, do hemisfério Sul, o de outono acontece
ao redor do dia 21 de março e o segundo, de primavera, ao redor
do dia 23 de setembro. Entre os solstícios de verão e de inverno, o ponto em
que o sol “sai” no horizonte varia, no mínimo, de um ângulo de quarenta
e sete graus (mais do que meio ângulo reto). Na
latitude do Estado de São Paulo, essa
diferença atinge e ultrapassa os 50 graus e vai se tornando maior à medida
que nos afastamos do Equador: aumentando a Latitude, para o Norte ou para o
Sul.
Importante contribuição na utilização da Astronomia para a navegação foi dada pela Escola de Sagres a
partir do primeiro quarto do sec. XV. A esfera armilar (feita de armilas,
aros de metal),
símbolo que sintetiza (na bandeira de Portugal) os
conhecimentos reunidos em Sagres, é composta pelos elementos
geométricos fundamentais da esfera celeste: equador, meridianos,
paralelos (trópicos) e a eclíptica.
As primeiras grandes navegações, feitas
por portugueses para Ocidente e pelos navegadores árabes para o Sul da costa
oriental da África, utilizaram a altura
da estrela polar como meio para determinar
a latitude em que estavam. Determinar o ângulo de altura da estrela Polar
em relação ao Horizonte significava determinar a Latitude do lugar. É preciso
lembrar que a medida desse ângulo implica que sejam visíveis
simultaneamente a Estrela Polar e o horizonte. Por essa razão tal medida
só pode ser feita durante os crepúsculos, matutino e vespertino. Tanto Vasco da
Gama, em 1498, quanto os navegadores árabes que costeavam a África Oriental e
que o ajudaram a chegar à Índia, usavam dispositivos diferentes mas
equivalentes na medida da altura da
Estrela Polar.
Vale voltar a lembrar que a Estrela
Polar é a única estrela imóvel do céu pelo simples fato de que ela está na
direção (bem próxima) da direção para onde aponta o eixo de rotação da Terra. A
paisagem celeste que se nos apresenta como esfera em cuja superfície interna
parecem estar incrustadas as estrelas, gira ao redor desse eixo. O eixo de
rotação aparente da esfera celeste nada mais é que o eixo de rotação da
Terra. Tudo se passa como se
estivéssemos no centro da abóbada celeste. Foi essa impressão, apenas aparente,
que deu ao homem (e continua a dar) a falsa ideia de que estava no centro do
Universo e que, por isso, deveria ser a coisa mais importante da criação. Uma
impressão parecida àquela que
poderia ter um frango girando no espeto. Toda a festa, o
Sol, a Lua e todo o céu estrelado, com todas as galáxias, dariam a um frango,
girando no espeto, a impressão de que ele é o centro de todos os movimentos do
Universo. Neste caso o Universo pareceria girar ao redor da direção do espeto. Ele,
o frango, também poderia ser levado a se imaginar como a coisa mais importante da
criação, por ter todo o Universo, mesmo as galáxias, a lhe girar ao redor.
Para um observador situado no Polo Norte
terrestre a Estrela Polar estará exatamente sobre sua cabeça, isto é no Zênite.
Com o passar das horas todos os demais corpos celestes estarão dando voltas
paralelas ao Horizonte. Nenhum deles tem ocaso ou nascimento.
Na medida em que o navegador for saindo do Polo Norte, a Estrela Polar vai
saindo do Zênite e se inclinando na direção do Horizonte. Os demais corpos celestes começam a ter sua
trajetória diurna aparente inclinada em relação ao Horizonte. Se o navegador
for se deslocando sempre mais na direção
Sul, a Estrela Polar vai se aproximando do Horizonte. Esse ângulo entre a
direção da estrela Polar e o Horizonte é que mede a Latitude do lugar. Nosso
navegador saberá que está chegando no Equador terrestre, latitude zero, quando
a Estrela Polar estiver chegando ao Horizonte: altura zero da Estrela Polar,
latitude zero. Quando esse navegador ultrapassar o Equador terrestre, a Estrela
Polar terá desaparecido para baixo do Horizonte Norte. Na direção do Sul vai
“aparecendo” outro Polo Celeste: o Polo Celeste Sul. Este no entanto não tem
uma estrela que o torne visível, como o Polo Celeste Norte com a Estrela Polar.
Neste caso, a altura do Polo Celeste, ou seja, a Latitude terá que ser
medida através de estrelas cuja distância angular ao Polo seja conhecida.
Cristóvão Colombo fez seu projeto de viagem, para chegar às Índias pensando em
manter seu rumo sempre no hemisfério Norte. Viajar sempre para Leste, mantendo
a mesma latitude significava manter seu rumo perpendicular à direção em que
ficava a Estrela Polar. Para saber em que Latitude
estaria navegando, Colombo devia e sabia medir, embora rusticamente, a altura
da Estrela Polar. Colombo, portanto podia e sabia medir sua latitude. O
que ele não sabia nem podia fazer, em sua época, era medir sua Longitude.
Por essa razão ele imaginou já estar chegando às Índias. Por isso a gente nativa e morena que ele encontrou no
Novo Mundo foi chamada de índia. Nossos povos nativos, os aborígenes,
serem chamados de índios é puramente
consequência de um erro na avaliação da longitude, feito
por Colombo, em 1492. Logo em seguida, o Tratado de Tordesilhas (1493) divide
as terras do Novo Mundo por um meridiano situado a uma certa distância
de um ponto conhecido e não em termos da Longitude.
A medida da longitude se tornaria um dos maiores
problemas das grandes potências marítimas no tempo entre os grandes
descobrimentos (1492) e meados do século XVIII. Os feitos e descobrimentos na
Astronomia que culminaram com a Gravitação de Newton, tinham granjeado para
essa Ciência um grande prestígio, em particular para os grandes protagonistas
dessas descobertas, Galileo e Newton. Ambos estavam convencidos de que o
problema da determinação da Longitude deveria ser resolvido pela
Astronomia. As descobertas de Galileu (1609) sobre os primeiros quatro
satélites de Júpiter sugeriam que eles poderiam fazer as vezes de um relógio
universal, isto é, visível de quase todo o Mundo. Foi essa idéia de relógio
universal com os satélites de Júpiter que resultou na primeira medida da
velocidade da luz, feita por Roemer, em 1690. Galileo desenvolveu ainda
um meio de se avaliar a Longitude baseado nas fases da Lua. Embora possível, essa
solução era complicada e pouco prática. As descobertas do Novo Mundo e o poderio
marítimo da Inglaterra tornavam cada vez mais urgente a necessidade de se
determinar com precisão o “onde” para definir a posse das terras que iam sendo descobertas. Esse
problema se tornara tão urgente que o parlamento britânico em 1714
instituiu um grande premio em dinheiro ( Libras 20.000 ) para estimular
as tentativas de se criar um método para determinar as Longitudes.
Esse desafio foi enfrentado por um hábil relojoeiro que, por isso, passaria
para a história: John
Harrison (1693-1776) que se propôs a resolver o problema com um relógio de precisão.
A ideia era simples mas sua realização tomaria quase toda sua vida. Para começar,
o relógio deveria marcar exatamente 24 horas entre duas passagens consecutivas do
sol pelo meridiano de Londres (Greenwich). A precisão seria o primeiro
requisito. Levado para outro lugar distante, o relógio, se confiável, levaria
sempre a hora do meio dia de Londres. Se levado para outra Longitude, o atraso
ou avanço do meio dia solar, daria diretamente, em horas, a diferença do meio
dia local em relação ao de Londres. 24 horas correspondem a uma volta ou 360o.
Então 360o divididos por 24 horas dariam uma Longitude de 15o/hora de
atraso ou
avanço. Então, se a passagem do sol pelo meridiano de
um lugar ocorre à 1 hora da tarde, 1 hora depois da hora de Londres, é porque o
sol levou uma hora entre o meridiano de Londres e o do lugar considerado: 15o
“depois” ou 15o de Longitude Leste. Muitos ensaios com diferentes modelos de
relógios foram feitos por Harrison, em décadas de trabalho. O relógio, além de
preciso deveria resistir às árduas condições, tanto pela agitação das
embarcações no oceano quanto pelas diferentes temperaturas e climas por onde
passaria. Muitos ensaios envolveram vários
modelos de relógios criados por Harrison, num trabalho de complexidade e
precisão cada vez maiores. O primeiro grande teste, em escala ultramarina foi a
determinação da longitude da Jamaica em 1762. Depois de muitas semanas
da travessia do Atlântico, o relógio levava a bordo a hora de Londres. Quando na Jamaica, a
passagem meridiana do sol, o meio dia local, aconteceu às 5 horas do relógio.
Na Jamaica o meio dia solar acontecia 5 horas depois do meio dia solar de
Londres. Como a cada hora correspondem 15o, a longitude da Jamaica seria
5 horas x 15o por hora = 75o
. A Jamaica ficava numa Longitude de 75o “depois” de
Londres,para Oeste. De volta a Londres o
relógio voltou a assinalar meio dia quando o sol voltou a passar pelo meridiano
de Londres. Depois de décadas de trabalho, já bem velho, John Harrison, recebeu
parte de seu merecido prêmio. A partir daí
ocorreu um grande surto de desenvolvimento
do relógio de precisão, principalmente para determinação das Longitudes. O
capitão James
Cook (1728-1779) foi o primeiro a descobrir para a Inglaterra novas
terras que já iam tendo suas longitudes determinadas. Mais ainda, o relógio a
bordo do “HMS Endeavour Bark”, por ele comandado, levava a bordo, até o Taití, os
primeiros relógios, lunetas e observadores
para registrar pela primeira vez um “transito” de Venus, para a determinação
também da distância Terra-Sol. A hora passava a ser o elemento de precisão
necessário para a determinação das Longitudes e outros eventos na Astronomia. O
Observatório de Greenwich (Londres) passou a fornecer a hora para que os relógios dos navios,
naquele porto, fossem acertados. Para isso, do alto do Observatório, em Greenwich,
em frente ao porto, uma grande esfera oca caia ao longo de um mastro vertical,
no instante exato da passagem meridiana do Sol. Era o sinal da hora para que os
navios acertassem seus relógios pelo de Greenwich. Logo essa prática se
estendeu a outros portos em que observatórios fazendo da luneta Meridiana o
ponteiro fixo diante do “mostrador” móvel do céu, tivessem como missão, além de
estudar posições de estrelas, controlar o “andamento” dos relógios,
especialmente para os navios. Para terminar, vale acrescentar uma
informação curiosa que embora não tenha os “ares” de coisa científica, foi
decisiva para o desenvolvimento das navegações, em particular para que a
Inglaterra se tornasse uma potencia marítima. Um dos maiores “inimigos” das
navegações de longa duração era o escorbuto, carência de vitamina C
que dizimava os marinheiros. Alem do novíssimo relógio dos Harrison (John
e seu filho Wiliam), lunetas e
astrônomos, o capitão James
Cook levava a bordo e
fazia a Marinha Britânica adotar o “chucrute” como indispensável fonte
de vitamina C na dieta do mar. Assim, em fins do séc. XVIII, ficou vencida
também a velha “batalha” contra o escorbuto, além de resolvido o problema da
Longitude
Rodolpho Caniato é autor de
vários livros, entre os quais
“O que é Astronomia” “O céu”, “A Terra em que vivemos”,
“(Re)Descobrindo a
Astronomia” é Capitão
Amador, certificado pela Marinha do Brasil e durante
muitos anos tem ministrado cursos de navegação em diferentes níveis.
Referências bibliográficas
Barros, Geraldo Luiz Miranda de- Astronomia sem Mistérios, Edições
Marítimas,Rio de Janeiro,1992
Barros, Geraldo Luiz Miranda de Navegando pelo Sol, Edições Marítimas, Rio de
Janeiro,1992.
Barros, Geraldo Luiz Miranda de , Navegação Astronômica,Edições
Marítimas,Rio de Janeiro,1998
Caminha, João Carlos Gonçalves, História Marítima,Bibl Ex
Ed, Rio de Janeiro,
Caniato, Rodolpho, O céu, Editora Atomo, Campinas,SP,2010
Caniato, Rodolpho, (Re)Descobrindo a AstronomiaSobel,Dava,
Longitude, Ediouro S.A.,1996,São Paulo Editora Atomo,Campinas,Sp,2011
Krause,Arthur, Astronomia para Todos,
Ibéria,Barcelona,1944.
Miguens, Altineu Pires, Navegação: Ciência e Arte,
Diretoris de Hidrografia e Navegação,Rio de Janeiro,1999
Rudaux, Lucien ET
alt. Astronomie,Librairie Larousse, Paris,
Sobel,Dava, Longitude, Ediouro S.A.,1996,São Paulo
Zagar,Francesco Astronomia Sferica e Teorica, Zanichelli
Ed, Bologna, 1944
[x1]A
opção mais aceita para a “Estrela Guia” foi a conjunção entre Júpiter e
Saturno, ao final de setembro e início de outubro de 7 a.C.
Professor Rodolpho Caniato, na semana passada (22 a 25 de maio de 2014) estive com um grupo de colegas em Sobral, onde foi realizado o I Encontro de Ensino de Astronomia do Ceará. Lá me lembrei e falei do senhor para alguns colegas e alunos presentes ao Encontro. Estive em vários encontros de Física pelo Brasil afora, onde o senhor ministrou palestras e cursos. Hoje resolvi buscá-lo na WEB e tive a grata surpresa de encontrar seu Blog. Tenho muito orgulho de tê-lo conhecido e até de ter ido à sua residência, quando fazia mestrado na UNICAMP. Claro que as grandes lembranças, que tenho, foram suas magníficas palestras e cursos ministrados em várias ocasiões. Sou do Piauí, onde fui professor da Escola Técnica Federal do Piauí, hoje IF-PI. Em 1998 fiz concurso para Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará - UECE. Portanto, estou a residir em Fortaleza há 16 anos. Meus E-mails são: prof.martins@yahoo.com.br e profeta.martins@gmail.com. Estou aposentado, mas continuo a participar, sobretudo dos encontros, palestras, congressos de Astronomia, Astrofísica, História e Filosofia das Ciências e Cosmologia.
ResponderExcluir