Depois de viver uma infância tipicamente urbana em Copacabana, nas vizinhanças do “Copa” (Copacabana Pálace Hotel) e do Lido em seus áureos tempos, nos havíamos mudado para um sítio em Corrupira, no bairro dos Fernandes. Das luzes do melhor do Rio de Janeiro para a escuridão imaculada daquele sertão paulista. Havíamos chegado em 1938 e eu tinha nove anos. Logo depois (1939) se iniciava a segunda guerra mundial. Para mim as luzes da jovem e vaidosa Copacabana eram substituídas pela escuridão e também pelo luar do sertão, coisas que eu nunca imaginara. O céu da cidade, cuja presença eu nem notara, agora se apresentava num esplendor que me deixou deslumbrado. Agora era preciso aprender a andar na escuridão, pelos caminhos rústicos trafegados apenas a pé, por carroças ou animais. O luar desconhecido da cidade, agora, além da poesia, tornava os caminhos bem visíveis; mudava muito a vida da gente.
Das noites no sertão ficaram em mim impressões e lembranças que nunca se apagariam. Além do luar e do céu estrelado, a familiaridade com todo um mundo de ruídos da noite: os latidos distantes dos cães que guardavam seus terreiros, as corujas e os curiangos piando seus solos e como grande “fundo”, o coaxar da saparia pelos brejos. Se todo o mato tem uma grande variedade de ruídos noturnos, os brejos têm algo de especial. Aí vivem numa imensa variedade, sapos, sapinhos, sapões, rãs e pererecas, além de aves, cobras e uma multidão de insetos aéreos e terrestres. No verão, essa variedade se enriquece com vaga-lumes e pirilampos que riscam com sua suave luz a escuridão da noite.
E´ interessante que essa espantosa variedade de seres vivos “dá expediente” principalmente à noite. Toda essa imensa diversidade de vida “funciona” plenamente na mais completa escuridão.
Algumas dessas “descobertas” pude fazer muito cedo, ainda criança. Com um precário lampião a querosene ou com a mais “avançada tecnologia” da época, um lampião a carbureto. Com ele fazia “expedições” para pescar em pequenos riachos ou para caçar rãs, logo depois das chuvas. A simples presença de uma pequena luz, não só mostra como alvoroça toda a vida do brejo a seu redor. A forte impressão da grande variedade e a presença perturbadora da luz sobre a vida do brejo ganhariam no futuro, para mim, um significado muito maior
. E´ que meu avô paterno, como muitos outros vizinhos, era italiano e andava muito ansioso por notícias da guerra. A guerra agora alvoroçava toda a vida da Europa e, em particular da Itália. Naquele lugar ermo, sem luz, a única maneira de obter alguma notícia seria um rádio. Não só, não se tinha rádio. Não havia vestígio de iluminação elétrica na região. A única lâmpada da região ficava na distante estaçãozinha de Corrupira, a alguns quilômetros de casa. Seria preciso arranjar um rádio e algo muito mais difícil: produzir a necessária energia elétrica.
Não só me lembro como acompanhei cada passo e ajudei a montar uma mini-hidrelétrica para fazer funcionar o velho e grande rádio que mais parecia um armário, tendo seu interior preenchido por grandes lâmpadas: as “válvulas”. Obviamente, se esperava que além de fazer funcionar o rádio, a mini-hidrelétrica deveria acender também algumas lâmpadas para diminuir e escuridão em que todos vivíamos imersos à noite.
Depois de semanas de trabalho, finalmente o pequeno “dínamo” de carro começou a rodar, acionado por uma polia acoplada à roda d´água de uns três metros de diâmetro. Esta por sua vez era tocada pela água num pequeno desnível em nosso regato que passava próximo ao brejo.
Com grande expectativa e ansiedade, o velho rádio foi ligado na presença de vários vizinhos que haviam acompanhado e esperado aquela montagem. As ondas curtas só podiam ser sintonizadas à noite, mesmo porque de dia todos trabalhávamos na enxada. Mais que alguma notícia fragmentada, o que mais se ouvia daquele rádio eram ruídos: silvos, “pipocas”, assobios, estalos e “descargas de estática”. Mesmo assim, nossos vizinhos mais próximos, vinham para saber se se tinha conseguido algum fragmento de notícia da guerra.
Juntamente com a “linha” constituída de dois arames, que trazia e energia elétrica do dínamo, instalado lá no rio, próximo ao brejo, meus tios haviam instalado uma lâmpada para iluminar o caminho para algum conserto à noite. Aquela lâmpada, muito fraquinha não iluminava muito mais que nossos lampiões a querosene. Ela ficava sobre um pequeno poste à beira do cominho que, pelo brejo, ia da casa até a pequenina “usina”
Apesar de fraca, aquela lâmpada instalada na beira do brejo alvoroçou toda vida que até então ali se desenrolava normalmente em plena escuridão. Uma imensa variedade de insetos alados passou a esvoaçar freneticamente ao redor daquela luz. Alguns esvoaçavam até próximo da lâmpada e logo voltavam para sua escuridão. Outros voavam em grandes voltas sem parar. Outros, aparentemente deslumbrados e seduzidos pela luz, voavam em voltas cada vez mais próximas e mais frenéticas. Estes já não conseguiam sair de seu deslumbramento, já não viam mais nada senão a luz e acabavam por “orbitar” tão próximos à lâmpada que queimavam suas asas. De asas queimadas caiam indefesos e moribundos. Até muitos vaga-lumes que antes enfeitavam a noite com suas delicadas luzes, se deixaram ofuscar, perderam a luz própria e caíram em agonia, encontrando a morte.
Aos poucos o chão ia se enchendo desses ex-voadores moribundos que, na busca da luz, haviam perdido as asas, a visão que tinham do seu mundo e a própria vida.
Enquanto o terreno ia se enchendo de insetos mortos e moribundos, outras coisas começavam a acontecer naquela relva iluminada. E´ que os sapos, atraídos pelos “petiscos” acumulados no chão, se aproximavam para um verdadeiro “banquete”: uma comilança farta e fácil como nunca tinham tido. Eles, os sapos, já não tinham que correr os riscos da caça na escuridão. Nem sequer corriam os riscos de, por engano, abocanhar um “freguês” meio amargo ou indigesto. Agora era só escolher e empanturrar-se sem “fazer força”. Assim, os sapos se locupletavam na claridade que agora parecia em seu proveito.
Tão felizes e despreocupados estavam os sapos com a nova “conjuntura” que não se deram conta de que outro desdobramento estava em marcha. E´ que, esguias e sorrateiras, algumas cobras espreitavam os sapos, desde a escuridão. Deslizando pela penumbra, as cobras podiam ver os sapos no campo iluminado, sem serem vistas e seguir-lhes os movimentos. Assim os sapos se tornaram alvo fácil para as cobras. Elas agora podiam escolher seus sapos mais apetitosos sem correr o risco e o trabalho de emboscar sapos menos adequados a seu paladar.
Enfim, toda aquela vida que antes seguia seu caminho natural, agora andava alvoroçada e “fora dos trilhos”. E´ bem verdade que também sem a lâmpada, todos aqueles insetos voadores, sapos e cobras também estariam sujeitos aos riscos, a imprevistos e à morte. Suas vidas também seriam efêmeras na escuridão. Também muitos sapos seriam abocanhados pelas cobras. Também estas poderiam acabar no bico de alguma seriema ou engolidas por outra cobra. Todos aqueles seres viventes eram também morrentes, como todas as formas de vida que povoam a Terra. O que a lâmpada provocou foi um grande alvoroço e a precipitação da morte daqueles que poderiam ter vivido mais na modéstia de sua escuridão. Talvez muitos se tenham beneficiado pela presença da luz. Alguns, mesmo tendo visto alguma luz, não se deixaram ofuscar por ela. Eles puderam ver pelo menos o tipo de tragédia que se abateu sobre aqueles que se deslumbraram pela luz e terminaram por não ver mais nada do pouco que viam antes. Alguns não chegaram a ter as asas queimadas mas já não conseguiam ver mais nada alem daquela luz: ficaram “convertidos” para a luz e já não conseguiam ver nem participar da vida na escuridão em que todos estão mergulhados. E´ preciso aprender e conseguir viver com as desvantagens mas também com as vantagens e satisfações possíveis naquela forma de vida a que já estavam adaptados. Esse aprendizado é que havia determinado a sobrevivência de todas as espécies nas condições daquele seu habitat.
O lugar em que vivi essa experiência da luz acesa no brejo, ficava no sítio de meu avô paterno no bairro dos Fernandes, em Corrupira(Jundiaí,SP), lugar em que vivi dos nove aos quatorze anos(1938-1943).
Por mera casualidade, esse sítio foi, muitos anos mais tarde, adquirido por um grande filósofo e escritor: Hubert Rhoden. Fui conhecê-lo. Era realmente uma figura humana que causava forte impressão. Além de sua cultura vastíssima e do invejável domínio da palavra, sua imagem era imponente: seu porte ereto e grande, sua basta cabeleira já toda branca. Seus olhos azuis, pareciam estar sempre focados no infinito. Seu tom de voz era sempre profético. Tudo fazia desse homem excepcional um verdadeiro luzeiro.
Aprendi muito com esse homem de grande cultura e sabedoria. A mim fascinava especialmente seu domínio sobre a etimologia: o conhecimento sobre a origem das palavras e suas raízes mais fundas. Sua área era a Filosofia Universal. Seu currículo, seus muitos livros, sua fala calma e segura, sem qualquer tropeço e sua convivência com Albert Einstein em Princeton, faziam dele um grande mestre. Para muitos, mais que isso: um verdadeiro “guru”. Para muitos ele se tornou uma grande lâmpada no brejo de suas vidas. Para muitos, esse homem se tornou uma “luz” tão forte que lhes ofuscou e tolheu a visão das outras coisas de suas vidas. Até mesmo as limitações e as fraquezas, próprias de qualquer ser humano, se tornavam virtudes excelsas para muitos dos deslumbrados. Não por culpa dele, mas por culpa daqueles que se deixaram ofuscar pelo fato de só olharem para aquela “luz”. Estes passaram a “orbitar” cativos, tão próximos que já não conseguiam ver outra coisa a não ser olhar para o mestre e repetir suas palavras.
Vários outros casos conheci, como do grande Pietro Ubaldi, autor de “A grande Síntese” . Vi coisas semelhantes a seu redor. Homens que pela brilho do que diziam podiam ser considerados grandes “luzeiros”. Menos por culpa deles e mais daqueles que os fitam tão fixa e unicamente, muitos destes se “queimaram as asas” e passavam a enxergar menos do que viam no apagado de suas vidas mais simples.
Se por um lado devemos buscar as “luzes” de quem sabe mais para jogar alguma claridade sobre nossos caminhos, não nos devemos deixar ofuscar ao ponto de só olharmos para a “luz”. Não podemos perder de vista nosso querido “brejo”. Nem as mais brilhantes lâmpadas valem nossa renuncia de conduzirmos nossas próprias vidas, mesmo que modestas ou sem grande brilho.
Todos os fanatismos que nos fazem olhar para uma única” luz” acabam por nos cegar para as limitações e possibilidades da vida. A escuridão com que temos que conviver é às vezes desconfortável e sempre cheia de riscos. No entanto a certeza de uma única “luz” para onde devemos olhar parece ridícula, diante de tantos diferentes pontos de luz para onde podemos olhar ainda melhor de mossa escuridão. O olhar fixo para uma única luz nos faz perder a possibilidade de aprender e desfrutar coisas que vemos na penumbra e até na escuridão do Mundo em que vivemos. E´ desde a mais completa escuridão que melhor podemos ver o esplendor do céu cheio de uma infinidade de estrelas, mesmo estando no “brejo” de nossas modestas vidas.
Quem sou eu
- Rodolpho Caniato
- Campinas, São Paulo, Brazil
- Rio de Janeiro em 1929. Bacharelado e Licenciatura em Matemática(PUC Rio, USP e PUCCAMP,1956).Cursos no exterior:”Advanced Topics”, Universidad Nacional de Chile,1964, “Vibrations and Waves”, Reed College, Oregon,USA,1965. Cursos no Brasil:Curso “Phywe” para professores de Física na AEC(Rio,1958), PSSCC Physics com os autores(1962).Doutorado (Física UNESP,1974) com a tese “Um Projeto Brasileiro para o Ensino de Física”,orientador Prof.J.Goldemberg, grau máximo. Ex-professor da PUCCAMP(1957-69),UNESP(1979—74),USP(visitante,197678),UNICAMP(1972-76), UFRRJ,Rio(1976,aposentado 1993). Autor dos livros: “O céu” e “As linguagens da Física” da Atica,”Com(ns)Ciência da Educação”(Papirus), “A Terra em que vivemos” da Atomo, “O que é Astronomia”da Brasiliense e “(Re)Descobrindo a Astronomia” da Atomo. Docência de cursos sobre os próprios livros em muitos países da América Latina(1974-1988), além de todas regiões do Brasil.
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